22/07/2020

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Bens públicos e o novo contrato de gestão instituído pela Lei nº 14.011

Ao longo da história recente, o Estado tem se deparado com o desequilíbrio do orçamento público: sucessivas quedas da arrecadação, crises econômicas, crescimento das despesas, em um cenário de demanda pelo incremento das políticas públicas e do aparato estatal.

Em razão disso, foram instituídos mecanismos com o objetivo de aumentar a eficiência da gestão pública, e, recentemente, foi editada a Medida Provisória nº 915, de 27 de dezembro de 2019, a qual aprimora os procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União, posteriormente convertida na Lei nº 14.011, de 10 de junho de 2020[1].

Nesse passo, o novo diploma normativo trouxe, entre outras contribuições, a possibilidade de realização de Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos, o qual transfere a posse do bem público a um particular a fim de promover a sua adequada utilização, viabilizando, assim, o atendimento ao interesse público e à função social da propriedade.

É, portanto, da maior importância o estudo e aperfeiçoamento desse mecanismo, a fim de que o instituto se desenvolva, tornando possível alcançar o patamar de eficiência na gestão dos bens públicos almejado pela nova legislação, o que, certamente, se traduzirá em benefício a toda a coletividade.

 Bens Públicos: Natureza Jurídica e possibilidade de contratação.

 Para uma perfeita compreensão do estudo, necessário se faz o aprofundamento da discussão acerca da natureza jurídica dos bens públicos, sua classificação e as possibilidades de sua administração, com vistas à aplicação do novo regramento instituído pela Lei nº 14.011/2020.

Ao discutir bens públicos no direito brasileiro, não há como se olvidar da disciplina legal contida nos artigos 98 a 103 do Código Civil de 2002, os quais constituem o Norte para o intérprete seja qual for a sua área de atuação[2].

Isso posto, os bens de uso comum do povo e os de uso especial possuem natureza jurídica de direito público, enquanto os bens dominicais possuem natureza jurídica híbrida.

Tal classificação se remete à afetação dos bens. Enquanto os dois primeiros são afetados ao uso público, seja ao uso coletivo ou ao uso da Administração à consecução de sua finalidade pública; o terceiro não ostenta tal qualidade, razão porque o duplo aspecto dos bens dominicais justifica a sua submissão a regime jurídico de direito privado parcialmente derrogado pelo direito público[3].

Essa classificação conduz ao entendimento de que somente os bens de uso especial podem ser objeto de Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos, restando controvertida a possibilidade de contratação quanto aos bens de uso comum do povo.

Isso se deve ao conteúdo normativo do artigo 7º, §1º, da Lei nº 14.011/2020, o qual define que o contrato a que se refere terá como objetivo viabilizar o uso do imóvel pela administração pública, o que será tratado de forma pormenorizada nesse trabalho.

O Contrato de Gestão da Lei nº 14.011/2020.

Grande inovação no ordenamento jurídico foi instituída pela Lei nº 14.011/2020, sobretudo quanto à gestão de bens imóveis públicos, os quais ganham um novo mecanismo de administração: o Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos.

Vale observar o artigo 7º do referido diploma legislativo:

Art. 7º A administração pública poderá celebrar contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos, nos termos da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.

  • 1º O contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos consiste na prestação, em um único contrato, de serviços de gerenciamento e manutenção de imóvel, incluído o fornecimento dos equipamentos, materiais e outros serviços necessários ao uso do imóvel pela administração pública, por escopo ou continuados.
  • 2º O contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos poderá:

I – incluir a realização de obras para adequação do imóvel, inclusive a elaboração dos projetos básico e executivo; e

II – ter prazo de duração de até 20 (vinte) anos, quando incluir investimentos iniciais relacionados à realização de obras e o fornecimento de bens.

  • 3º  (VETADO).
  • 4º Na hipótese de que trata o § 2º deste artigo, as obras e os bens disponibilizados serão de propriedade do contratante.
  • 5º Ato do Poder Executivo poderá regulamentar o disposto neste artigo.

 

Da leitura do texto normativo acima transcrito, pode-se extrair diversas características desse novo tipo de contratação.

Já no caput do artigo 7º, a nomenclatura contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos chama atenção para um novo modelo que está sendo inaugurado, o qual se destina, precipuamente, à ocupação de imóveis públicos, constando, ainda, que tal contratação é regida pela Lei Geral das Licitações, qual seja, a Lei nº 8.666/93.

Essa característica deve ser considerada em todo caso, uma vez que esse é o espírito que se extrai da legislação, a qual visa promover o adequado aproveitamento dos bens públicos, sobretudo aqueles que se encontram abandonados e em estado de deterioração, mas que podem servir como fontes de receitas primárias através do poder patrimonial do Estado consoante possibilidade do inovador contrato de gestão para ocupação de bens públicos.

Desta nomenclatura, é possível que surja dúvida quanto à aplicabilidade da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, a qual disciplina, em sua Seção III, a partir do artigo 5º, outro tipo de contrato de gestão, este destinado especificamente à contratação com as chamadas Organizações Sociais.

No entanto, o caput do artigo 7º, da lei recém publicada, é claro ao determinar que a nova forma de contratação é regida pela Lei nº 8.666/93, sobretudo aos ditames do artigo 54 e seguintes, não pela chamada Lei das Organizações Sociais.

E as diferenças se tornam ainda mais claras, quando, a partir do §1º, uma série de características desvinculam o novo instituto do contrato de gestão inaugurado pela lei das Organizações Sociais, sendo certo que aquele contempla prestação, em um único contrato, de serviços de gerenciamento e manutenção de imóvel, incluído o fornecimento dos equipamentos, materiais e outros serviços necessários ao uso do imóvel pela administração pública, por escopo ou continuados.

Tão logo se inicia a leitura, a primeira característica fica clara: o novo contrato público engloba diversas atividades, tais como a prestação de serviços de gerenciamento e manutenção, incluindo o fornecimento de materiais e outros serviços.

Essa talvez seja a mais marcante contribuição do novo regramento, e também a mais controversa, ao permitir que a Administração, em um único contrato, promova a gestão do imóvel e o fornecimento de materiais e equipamentos.

Isso nos remete à qualidade do imóvel: especialmente os bens de uso especial podem ser objeto do contrato em análise, em razão da natureza do negócio e da expressão ao uso do imóvel pela administração pública, contida na parte final da referido norma.

Ainda, a norma do §1º traz a possibilidade de serem firmados contratos por escopo ou continuados.

Nos termos do entendimento entabulado pelo Tribunal de Contas da União, no Acórdão 127/2016 – Plenário, o contrato por escopo é aquele cujo prazo de execução somente se extingue quando o contratado entrega para a Administração o objeto contratado.

Nesse sentido, é possível inferir que o Contrato de Gestão de Imóveis Públicos pode ser firmado com objetivo certo, tal qual ocorre no caso dos hospitais de campanha erguidos para enfrentamento da Pandemia da Covid-19, o qual se encerraria assim que cessada sua necessidade.

Já o contrato continuado se presta às situações em que se faz necessário o atendimento de necessidades constantes da administração, ou da população, destinatária final da prestação do serviço.

Nesse caso, uma hipótese de contratação através do Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos pode ser para realização de serviços públicos contínuos, tal qual ocorre com a gestão de praças, escolas, hospitais, parques, entre outros.

Em ambos os casos, a contratação deverá atingir dois objetivos: promover a adequada utilização dos bens públicos e fazer com que a administração ganhe eficiência ao se concentrar na prestação do serviço público propriamente dito.

A discussão por trás desse novo mecanismo é a necessidade de destinação dos bens imóveis públicos não devidamente aproveitados ou manutenidos pela Administração Pública, que, muitas vezes, não conseguiu promover seu adequado aproveitamento, deixando que se deteriorassem, depreciassem, e, ainda, em alguns casos, prejudicando a vizinhança, causando problemas de segurança e até de saúde pública.

É importante, ainda, ressaltar o quanto contido no §2º, do artigo 7º, o qual prevê a possibilidade de inclusão da realização de obras no imóvel público, inclusive com a elaboração dos projetos básico e executivo.

Essa é outra norma específica e polêmica deste instituto, a qual contraria expressamente a previsão contida no artigo 7º, §2º, I, da Lei nº 8.666/93[4], que prescreve que as obras e serviços somente poderão ser licitados quando houver projeto básico aprovado pela autoridade competente, o qual possa ser disponibilizado aos licitantes.

No entanto, por se tratar de norma específica, esta deve prevalecer à norma geral contida na lei de regência das licitações.

Outro aspecto importante é a prescrição contida no §2º, II, do referido artigo 7º, o qual dispõe que o contrato em análise terá duração de até 20 (vinte) anos, dependendo do investimento inicial realizado pelo contratado, o que pode incluir as obras realizadas e o fornecimento de bens.

Esse ponto permite inferir que, à administração pública está previamente deferido o prazo de até 20 (vinte) anos para devolver ao particular o valor dispendido inicialmente, acrescido dos valores dos serviços de gerenciamento e manutenção do imóvel, bem como dos equipamentos, materiais e outros serviços fornecidos durante a vigência contratual.

Desse modo, pode-se afirmar que a gestão do bem imóvel público deverá ser transferida ao particular pelo mesmo prazo deferido ao contratante para que quite os investimentos iniciais realizados.

Nesse ponto, a contratação pode se assemelhar à uma Parceria Público-Privada, na modalidade de Concessão Administrativa, uma vez que a Administração é usuária direta e destinatária do serviço contratado, envolvendo investimentos particulares para a consecução dos objetivos, bem como contraprestação pública.

Inclusive, quando se analisa o §4º do artigo 7º, da Lei º 14.011/2020, outra semelhança vem à tona, vez que as obras e os bens disponibilizados nos investimentos iniciais são transferidos à propriedade do ente contratante, por decorrência lógica da remuneração da administração por esse serviço.

Um aspecto que não foi abordado no regramento em análise refere-se à exploração econômica do bem imóvel pelo particular, o que, não obstante, não deve ser vedado, inclusive visando a plena satisfação do interesse público envolvido, e embora não seja a finalidade principal do contrato.

É certo que a matéria é passível de regulamentação, inclusive a teor do §5º do artigo 7º. No entanto, as diretrizes para essa nova modalidade de contratação estão postas, restando verificar, de fato, a sua aplicação, bem como a reação dos órgãos de fiscalização e tribunais, especialmente no que tange à verificação da constitucionalidade e legalidade do instituto.

 CONCLUSÃO

Seguindo a tendência de maximização da eficiência administrativa, com o objetivo de redução de custos e aumento da rentabilidade estatal, o Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos se constitui um excelente mecanismo na busca pela recuperação de bens públicos em estado de abandono, por exemplo, com o fulcro de promover a melhoria da gestão patrimonial.

Nesse sentido, como visto, a criação do contrato em análise tem o objetivo de modernizar a gestão dos bens públicos, o que possibilitará um melhor aproveitamento do potencial existente, reduzindo os custos e promovendo a eficiência da gestão pública.

Portanto, o Contrato de Gestão para Ocupação de Imóveis Públicos é um excelente instrumento de gestão dos bens públicos à disposição da Administração que, se bem utilizado, pode promover uma revolução na eficiência administrativa.

 

[1] Ressalte-se a passagem contida na exposição de motivos da MP 915/2019, a qual assim justificou a necessidade da norma:

Igualmente, a proposta mostra-se relevante e urgente ao permitir a adoção das ações de melhoria da gestão patrimonial e a promoção dos ajustes necessários ao ganho de eficiência na gestão do patrimônio da União.

Esse conjunto de alterações no arcabouço legal mostram-se de extrema importância para o momento que passa o país, de consolidação e ajuste fiscal, no qual medidas de ganho de eficiência que impliquem em redução e racionalização dos gastos e incremento de receitas mostram-se prioritárias para preservar a vida de pessoas, do meio ambiente urbano, equilibrar as finanças públicas e promover a retomada do crescimento do país.

[2] Nesse sentido, a classificação legal dos bens públicos, consoante prescrição contida no artigo 99 do referido diploma legislativo, afirma o seguinte:

Art. 99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Sobre a referida classificação, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2] assim consignou:

O critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens: os da primeira categoria são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os da segunda ao uso da Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas as repartições públicas, os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (veículos oficiais, materiais de consumo, navios de guerra), as terras dos silvícolas, os mercados municipais, os teatros públicos, os cemitérios públicos; os da terceira não têm destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo Poder Público, para obtenção de renda; é o caso das terras devolutas, dos terrenos de marinha, dos imóveis não utilizados pela Administração, dos bens móveis que se tornem inservíveis. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pag. 1514.)

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada. p. 1521.

[4] § 2o  As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando: I – houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório;

 

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