09/08/2021

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Contratos administrativos e Covid-19 – Como compreender a manutenção das condições de habilitação durante as execuções contratuais

A Lei n.º 8.666/1993 (1) dispõe, em seu artigo 55, inciso XIII, acerca da obrigatoriedade – direcionada ao contratado – de manter as condições de habilitação durante a totalidade da execução contratual. Trata-se de cláusula indispensável quando tratamos de contratos administrativos, sendo uma norma tão relevante ao regime jurídico do direito público, que teve seu texto replicado de forma quase que idêntica na nova lei de licitações (2).

Entretanto, nos parece evidente que, se nos tempos do “antigo normal”, uma interpretação restritiva da lei, no sentido de aplicação automática de penalidade no caso de eventual descumprimento já se mostrava equivocada, atualmente temos mais um motivo para reforçar a negativa de tal compreensão. Em verdade, o contexto fático específico da pandemia acaba por acentuar a necessidade de soluções sistemáticas e consentâneas com a realidade que se impôs.

Nesse sentido, cumpre ressaltar: não se trata de assunto inexpressivo, circunscrito a uma discussão de hermenêutica jurídica. Ao contrário, o tema apresenta relevância, porque, na prática, ultrapassado mais de um ano da instalação da crise sanitária, o que era para ser uma garantia contratual da Administração, efetivamente, passou a ser visto como subterfúgio motivador de rescisões unilaterais dos contratos administrativos.

Por óbvio, não se ignora a importância da regra ou, muito menos, defende-se o esvaziamento de sua eficácia. Estamos diante de uma salvaguarda, que deve ser observada e, inclusive, cobrada pela Administração no controle das execuções contratuais. Contudo, eventuais falhas na manutenção das condições de habilitação, durante a execução dos pactos administrativos, devem ter suas consequências sopesadas em face da realidade que se apresenta e da regularidade da execução contratual.

Várias são as possibilidades quando falamos em exigências para habilitação em licitações e, neste momento, utilizaremos como exemplo a imposição de regularidade fiscal. Conforme indicado inicialmente, não basta a demonstração do cumprimento nas etapas inaugurais do certame: assinado o ajuste, durante toda a execução contratual tal condição deve ser mantida ilesa.

Diante disso, levando em consideração a grave crise social e financeira que assola o Brasil, aprofundada pelos efeitos devastadores da pandemia por Covid-19, surge a pergunta: seria correto entender eventual falha em certidão fiscal, como um motivo suficiente à rescisão de contratos administrativos em curso? Evidentemente, não. E aqui podemos elencar inúmeros motivos, que vão desde dificuldades financeiras até adversidades logísticas de atendimento em órgãos públicos – frisa-se, um contexto comunitário global, que se arrasta há mais de um ano.

Logo, inevitável admitir que o panorama vivenciado não somente influencia, como deve ser um fator de extrema relevância nas análises e nas resoluções administrativas.

Diante disso, em termos normativos, existem instrumentos dirigidos ao gestor público, quando nos referimos a uma tomada de decisão condizente com a realidade dos fatos. A título meramente ilustrativo, podemos citar o artigo 22, parágrafo primeiro, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (3), que, de modo expresso, determina: levem em consideração as circunstâncias práticas verificadas no caso concreto.

Posta a diretriz normativa, nos parece que a regra de ouro à definição de casos práticos é observar se há uma relação de causalidade entre a perda das condições de habilitação e a possibilidade do efetivo cumprimento contratual (4). Isto é: em que medida a ausência da manutenção da condição afetou a Administração Pública e a execução do objeto contratual? Somente com esse tipo de raciocínio teremos uma decisão administrativa perfeitamente adequada, precisa em face do caso que se apresenta.

Se antes já sabíamos, agora, ante a pandemia por Covid-19, temos com absoluta certeza de que a boa administração pública pressupõe partilhar o sensível (5). Ou seja, gerir a máquina governamental exige a compreensão de que as relações estatais compreendem uma parte comum, queremos dizer, um âmbito de experiências vivenciadas em sociedade, Administração e administrado, bem como uma parte específica, externada na sensibilidade daqueles que têm competência jurídica-normativa para decidir.

No que diz respeito à última, o exercício funcional administrativo só se realiza dentro de parâmetros constitucionais quando alberga a ambivalência supracitada, pressuposto inequívoco da decisão administrativa legítima. Esquecer, omitir ou desconsiderar o contexto indicado, nada mais é do que desrespeitar preceitos constitucionais, atentando contra o interesse público e, consequentemente, contra o direito de particulares.

 

(1) Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam: XIII – a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação.

(2) Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam: XVI – a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições exigidas para a habilitação na licitação, ou para a qualificação, na contratação direta;
(3) Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. § 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

(4) A perspectiva é defendida de longa data no âmbito da doutrina brasileira, conforme podemos destacar, a título meramente ilustrativo em: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª Ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 819-820. A jurisprudência nacional igualmente indica, há anos, o entendimento perfilhado, vide: STJ. EDcl no MS n. 13101. Rel. Min. Eliana Calmon. DJe: 25/05/2009.

(5) O conceito de partilha administrativa do sensível foi apresentado como tese de doutorado e, resumidamente, indica a seguinte ideia: no âmbito de processos administrativos, a Administração Pública, enquanto parte, partilha – no sentido de comungar – com o administrado um plano fático, ou seja, a materialidade do mundo sensível. Todavia, ao mesmo tempo, ela partilha – no sentido de ter em apartado – a competência decisória para tomar decisões, de modo que nenhum dos dois planos podem ser desconsiderados no exercício funcional administrativo. LUCENA, Pedro Flávio Cardoso. Partilha administrativa do sensível: entre fatos, provas e prognoses administrativas. 2020. 298 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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