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Já há muitos anos tem-se observado um volume crescente de ações judiciais propostas por instituições filantrópicas que atuam de forma complementar à Administração Pública, prestando serviços essenciais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
O cerne dessas demandas é o reconhecimento da profunda defasagem histórica dos valores constantes da Tabela de Procedimentos Ambulatoriais e Hospitalares do SUS, utilizada como fator determinante da remuneração dessas instituições.
A principal reivindicação das entidades é a condenação da União Federal à promoção da revisão dos valores fixados nos ajustes celebrados com elas, o que significa desconsideração da Tabela SUS como critério, com sua substituição por outra aferição sintética de valores de ações e serviços de saúde aderente ao real custeio das atividades em questão ou, sob o ponto de vista “prático”, a revisão dos valores constantes da própria Tabela SUS.
As ações visam, primordialmente, que os novos procedimentos passem a ser remunerados, no mínimo, com base nos parâmetros estabelecidos pela Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (TUNEP), elaborada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ou, na sua ausência, pela aplicação do Índice de Valoração do Ressarcimento (IVR).
Ambos os critérios são usualmente utilizados no âmbito da saúde suplementar e são percebidos pelas entidades atuantes no SUS como mais adequados à realidade de custos dos serviços de saúde. Além da revisão para o futuro, as ações pleiteiam o pagamento das diferenças devidas retroativamente aos últimos cinco anos contados da data de ajuizamento, bem como os valores repassados a menor no curso do processo judicial.
A motivação por trás dessas ações reside na premissa de que a baixíssima remuneração, há anos e anos praticada, inviabiliza a manutenção da qualidade dos serviços (exigida pelo artigo 26[1] da Lei federal nº 8.080/1990 — a Lei do SUS), compromete a sustentabilidade financeira das instituições e, em última instância, impacta muito nocivamente a capacidade de real atendimento à população.
Apesar da recorrência e da relevância do tema no cenário jurídico e da saúde, a jurisprudência pátria, tanto em primeira quanto em segunda instância, bem como no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, ainda não alcançou um consenso definitivo sobre diversas questões de direito envolvendo a matéria.
Diante dessa divergência e da necessidade de uniformizar o entendimento do Poder Judiciário a respeito considerando a quantidade imensa de processos sobre esta matéria, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de 17/12/2024 (DJEN de 08 de janeiro de 2025), decidiu pela afetação conjunta dos Recursos Especiais nº 2.176.896/DF, nº 2.176.897-DF, 2.184.221-DF e 2.182.157-DF, como representativos da controvérsia, cadastrando a questão como Tema Repetitivo nº 1.305/STJ.
A iniciativa visa delimitar, de forma vinculante para todo o Judiciário brasileiro, os seguintes pontos cruciais, cuja apreciação poderá influenciar no destino da sustentação da saúde complementar em nosso país:
— Legitimidade Passiva da União Federal: Se a União Federal deve figurar isoladamente no polo passivo de demanda em que se pretende a revisão dos valores de custeio repassados pela Administração Pública às Organizações Sociais, tendo como parâmetro a Tabela SUS;
— (In) Existência de Litisconsórcio Passivo Necessário: A necessidade ou não de os demais entes federativos (Estados e Municípios), que também são gestores do SUS e celebraram os contratos e convênios objeto dos questionamentos judiciais, integrarem a lide juntamente com a União;
— Equiparação de Valores (TUNEP/IVR): Se é possível equiparar os valores da Tabela SUS aos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – ou seja, pela Tabela TUNEP/IVR – com o objetivo de preservar o equilíbrio econômico-financeiro de contrato ou convênio firmado com associações civis sem fins lucrativos para prestação de serviços de saúde em caráter complementar, superando a estagnação da Tabela SUS.
Os recursos tramitam sob a relatoria da Ministra Regina Helena Costa. Em sua proposta de afetação, a ministra ressaltou a extrema relevância da matéria. Ela destacou o fluxo contínuo e massivo de recursos sobre o tema que chegam ao STJ, bem como a clara divergência jurisprudencial entre os entendimentos fixados pelos tribunais de origem (os tribunais estaduais e federais de segunda instância) e aquele adotado pelas próprias Turmas que compõem a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça.
A ministra explicou que, enquanto os tribunais locais frequentemente assentam o entendimento de que a União pode figurar isoladamente no polo passivo das demandas (dispensando o litisconsórcio necessário com Estados ou Municípios) e que a revisão dos valores da Tabela SUS com base na Tabela TUNEP/ANS é possível, as Turmas da Primeira Seção do STJ, que durante cerca de 15 anos compartilhavam aludida convicção, mudaram sua posição e recentemente vinham unificando o entendimento de que, em demandas que alegam desequilíbrio econômico-financeiro em contratos de saúde complementar, o polo passivo deve ser composto pela União e também pelo ente subnacional contratante (Estado e ou Município).
Já em relação ao mérito, nota-se polarização dos tribunais federais sobre o tema.
No âmbito do TRF 1ª Região, a matéria vem sendo consistentemente apreciada no sentido da procedência do pleito de reequilíbrio econômico-financeiro dos valores balizadores dos contratos entre a Administração Pública e as entidades assistenciais, mediante a adoção dos valores praticados para os mesmos procedimentos médicos na Tabela TUNEP/IVR, que, aliás, orienta os reembolsos feitos à União Federal pelas operadoras de planos de saúde privados quando seus segurados são atendidos pelo SUS.
Os TRF’s de outras regiões, porém, não têm se “comportado” da mesma forma, não ostentando tendência jurisprudencial, seja favorável, seja contrária ao reequilíbrio.
Adicionalmente, a ministra Regina Helena Costa sublinhou a importância de se alcançar um consenso definitivo, enfatizando que “a matéria aqui tratada ocupa o 5º lugar em termos de impacto orçamentário geral, sendo responsável pela inscrição de mais de 2 bilhões em precatórios, superando demandas antigas de altos valores, como as demandas do setor sucroalcooleiro e FUNDEF, sendo, no âmbito do TRF1, o 2º maior montante, atrás apenas do pagamento relativo ao acordo da VARIG”. Esse dado evidencia a magnitude do tema e a urgência de uma solução jurídica estável.
Consequências da Afetação e Perspectivas Futuras
Como consequência imediata do acolhimento unânime da proposta de afetação pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, foi determinada a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem em todo o território nacional, à exceção daqueles casos nos quais já se operou o trânsito em julgado (ou seja, não cabe mais debate sobre o tema, tendo sido esgotados os recursos).
A decisão final do STJ sobre o Tema Repetitivo nº 1.305/STJ ainda não proferida e a afetação, por si só, não altera o quadro fático-jurídico da “Tese TUNEP/IVR”, mas representa um passo decisivo para a pacificação da matéria.
A resolução dessas questões pelo STJ terá um impacto significativo na realidade financeira dos contratos de gestão, convênios e afins, por meio dos quais organizações sociais e outras entidades sem fins lucrativos prestam serviços ao SUS e na forma como o equilíbrio econômico-financeiro desses ajustes é — na verdade, “necessita ser” — garantido.
Diante de sua evidente importância, a matéria demanda acompanhamento de perto por todos os atores envolvidos do denominado Terceiro Setor do segmento da saúde no Brasil.
Valéria Hadlich Camargo Sampaio
[1] Art. 26. Os critérios e valores para a remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura assistencial serão estabelecidos pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovados no Conselho Nacional de Saúde.