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Recentemente o Tribunal de Contas da União reafirmou entendimento, já anteriormente sedimentado sob a égide da Lei Federal nº 8.666/1993, acerca da possibilidade de participação de instituições filantrópicas em licitações públicas promovidas pelo Governo Federal[1].
Referido entendimento, conquanto reproduza decisões anteriores[2] (i) inaugura o posicionamento daquela Corte de Contas sob a regência da Lei Federal nº 14.133/2021, (ii) representa valiosa referência futura – de observância obrigatória – não apenas para os entes da Administração Federal, mas também dos entes subnacionais em razão do disposto na Súmula nº 222 do TCU[3], na confecção de seus editais de licitação, e (iii) e encerra discussão antiga acerca do confronto entre os princípios da isonomia e da economicidade em tais situações.
Desde 2017, a Instrução Normativa nº 05 da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento (SEGES/MP), que dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento de contratação de serviços sob o regime de execução indireta no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, vedava a participação de entidades sem fins lucrativos em certames destinados à contratação de empresas, em razão da isonomia entre os licitantes. Vejamos:
Art. 12 (…)
Parágrafo único. Considerando-se que as instituições sem fins lucrativos gozam de benefícios fiscais e previdenciários específicos, condição que reduz seus custos operacionais em relação às pessoas jurídicas ou físicas, legal e regularmente tributadas, não será permitida, em observância ao princípio da isonomia, a participação de instituições sem fins lucrativos em processos licitatórios destinados à contratação de empresário, de sociedade empresária ou de consórcio de empresa.[4]
Nada obstante a SEGES/MP, em 2021, tenha orientado (por determinação do TCU), que os entes da Administração Federal incluíssem “em seus editais a possibilidade de participação de instituições sem fins lucrativos nos processos licitatórios para a contratação de serviços sob regime de execução indireta, excetuadas aquelas qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), até que se proceda a alteração da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017.”[5], a verdade é que o impacto do confronto de referidos princípios se fez presente em diversos editais de licitação, notadamente para a contratação de serviços relacionados à assistência social, difusão cultural, educação e saúde (cada qual com sua especificidade).
Os defensores da tese da “impossibilidade” de participação de instituições filantrópicas e/ou sem fins lucrativos, arguiam que, por tais instituições gozarem de benefícios fiscais e tributários[6] não ofertados às sociedades empresárias em geral, haveria “vantagem competitiva desleal” acarretando desequilíbrio nas condições de participação, e violação à isonomia (art. 5º, CF), a livre iniciativa (art. 170, IV, CF), bem como o princípio da licitação (art. 37, XXI, CF).
Ocorre que, em diversas situações, notadamente no setor de saúde, tal vedação genérica não apenas impacta diretamente o universo de licitantes (eis que diversos players possuem braços de atuação filantrópicos), como também prejudica a própria financiabilidade dos serviços!
Não sem razão o TCU afastou a possibilidade de tal vedação genérica, condicionando a participação de instituições sem fins lucrativos apenas a (i) não estarem participando da licitação na condição de OSCIPs[7], e à (ii) existência de compatibilidade entre o objeto licitado e a finalidade de atuação da organização social, conforme estabelecido em seu Estatuto, eis que inexiste qualquer disposição constitucional ou legal (nem mesmo jurisprudencial) que autorize a vedação total em sentido contrário.
Saliente-se que a distinção essencial das instituições sem fins lucrativos das sociedades empresárias em geral é a obrigatoriedade de reversão dos resultados positivos auferidos na promoção e manutenção das próprias atividades e objetivos estatutários, vedando-se a distribuição de lucros entre seus sócios, dirigentes, empregados ou doadores.
Por assim o ser, a participações em licitações públicas pode vir a assegurar não apenas efetiva economicidade à licitação, mas também favorecer a própria autossustentabilidade econômica do serviço prestado. Valéria Hadlich, em artigo voltado a analisar as possibilidades de aperfeiçoamento do modelo de organizações sociais de saúde, já teve a oportunidade de apontar que:
(…) a obtenção de receitas por meio de captação de recursos externos, contribuindo para a sustentabilidade das entidades não pode ser enxergada como ‘infração’ ao modelo organizacional estabelecido.
Não subsiste razão para críticas ou vedação a que uma organização social de saúde componha, por exemplo, um consórcio alinhando-se com outras OSS e ou com sociedades empresárias e posteriormente compondo o quadro de acionistas de sociedade de propósito específico, no âmbito de procedimento licitatório com o objetivo de constituir parceira público-privada relacionada a sua vocação e, enfim gerando receitas extras a serem revertidas na execução de seu objeto social
Na mesma linha, o modelo pode ser impulsionado mediante a admissão da participação da OSS em procedimentos licitatórios objetivando a terceirização da execução de ações e serviços de saúde por meio de contrato administrativo típico.[8]
Frise-se que, enquanto no Brasil ainda se discute a possibilidade (ou não) de participação de instituições filantrópicas em contratações públicas, desde 2015, a tendência internacional é estimular a própria utilização do capital filantrópico no financiamento de ações voltadas ao desenvolvimento econômico-social ou ambiental, ainda que por meio de contratações e serviços públicos, visando o atendimento às metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS) notadamente em épocas de restrições fiscais.
O financiamento misto (em inglês Blended Finance), “une recursos públicos, de fomento ou filantrópicos a capital privado com objetivo de financiar projetos de impacto positivo social, ambiental ou de desenvolvimento econômico”[9], por meio da mitigação de riscos de investidores comerciais.
Com essa estrutura de financiamento, diferentes agentes podem investir lado a lado, mesmo focando em suas próprias metas, como retorno financeiro ou impacto socioambiental.
Trata-se de uma “ferramenta transformadora para preencher lacunas de financiamento”[10], ao ponto de, inclusive, a World Association of PPPs (WAPPP) eleger como “tema do ano” as discussões de sua implementação em parcerias público-privadas como forma de aprimorar o acesso à saúde de qualidade e a construção de infraestruturas resilientes.
Guardadas as devidas proporções, o racional da utilização do capital filantrópico para fins de viabilização do próprio financiamento de setores atendidos por entidades sem fins lucrativos é algo a ser seriamente refletido pelos formuladores de políticas públicas, ainda mais agora, em que o TCU expressamente sedimentou a possibilidade de, além da formalização de convênios e contratos de programa, sua contratação via Lei Federal nº 14.133/2021.
O setor de prestação de serviços assistenciais em saúde (bata branca) por entes privados, por exemplo, encontra-se em franca expansão desde a exitosa contratação da PPP do Hospital do Subúrbio (BA) em 2010. A perspectiva para os próximos anos, por sua vez, é altamente favorável, como demonstrado pela recente licitação da PPP do Hospital Infantojuvenil de Guarulhos (SP).
É necessário romper a barreira do pensamento tradicional – resguardada a contabilização adequada das receitas auferidas pela entidade filantrópica, bem como a documentação da reversão de tais valores à própria atividade-fim – e incorporar a experiência exitosa da atuação das associações sem fins lucrativos na gestão e prestação de serviços de interesse social, nas contratações de PPP Sociais.
Afinal, a participação das entidades filantrópicas nos certames não apenas pode reduzir diretamente o custo direto da operação contratada em razão do especial status fiscal gozado por tais instituições (retornando para a Erário o valor deixado de ser arrecadado por tal condição), mas também viabilizar a redução dos próprios custos de finance do projeto – e consequentemente da contraprestação pecuniária total dispendida –, eis que o capital filantrópico não é destinado ao lucro e admite menores taxas de retorno do que aquelas praticadas no mercado.
Pedro Paulo de Rezende Porto Filho e Yahn Rainer Gnecco Marinho da Costa
[1] Acórdão nº 2.481/2024 – TCU/Plenário, rel. Min. Augusto Nardes, j. 27.11.2024
[2] Já externado, por exemplo, nos Acórdãos nº 746/2014 – TCU/Plenário, nº 1.406/2017 – TCU/Plenário, e nº 2.847/2019 – TCU/Plenário.
[3] “As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
[4] Igual redação era contida no art. 21, §3º, da Portaria TCU nº 128, de 14.05.2014, posteriormente revogada pela Portaria TCU nº 444, de 28.12.2018.
[5] Orientação SEGES/MP nº 30.
[6] As sociedades sem fins lucrativos fazem jus a isenções do pagamento de Imposto de Renda, nos termos do art. 150, inciso VI, alínea ‘c’, da Constituição Federal e arts. 9º e 14 da Lei 5.172/1966. Podem, adicionalmente, consoante o art. 13, inciso VI, e § 2º, incisos II e III, da Lei 9.249/1995, e o art. 365, II, do Regulamento de Imposto de Renda (RIR), auferir doações de pessoas jurídicas que, por sua vez, passam a ter direito a dedução no Imposto de Renda, até o limite de 2% sobre o lucro operacional das doações efetuadas às entidades. Ainda, nos termos do art. 195, § 7º, da Constituição Federal, a imunidade de tributos alcança as entidades de educação e assistência social sem fins lucrativos no que tange aos impostos sobre renda, patrimônio e serviços, a exemplo do Imposto sobre Serviços (ISS), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e Imposto Territorial Rural.
[7] Conforme entendimento já sedimentado no Acórdão TCU nº 746/2014 – TCU, Plenário, rel. Min. Marcos Bemquerer, j. 26.03.2014, as OSCIPs apenas podem se relacionar com a Administração Pública por meio de Termos de Parceria.
[8] CAMARGO SAMPAIO, Valéria Hadlich. Organização social: aperfeiçoamento e fortalecimento do modelo como instrumento de implementação das políticas públicas na área de saúde. Disponível em https://porto.adv.br/organizacao-social-aperfeicoamento-e-fortalecimento-do-modelo-como-instrumento-de-implementacao-das-politicas-publicas-na-area-da-saude/.
[9] ANBIMA. Entenda como funcionam as operações de blended finance. Disponível em https://www.anbima.com.br/pt_br/noticias/entenda-como-funcionam-as-operacoes-de-blended-finance.htm /.
[10] WAPP. Blended Finance in Public-Private Partnerships: A Catalyst for Sustainable Development. Disponível em https://wappp.net/blog/blended-finance-in-public-private-partnerships-a-catalyst-for-sustainable-development/.