X
Area de atuação Destaques noticias e artigos
Publicada no último dia 14/05, a Medida Provisória 966/20 faz uso de disposições preexistentes no ordenamento jurídico brasileiro para dispor sobre a responsabilização de agentes públicos por ação ou omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, independentemente se praticados ou não na vigência de estado de calamidade pública.
De acordo com o artigo 1º, a responsabilização dos agentes públicos, nas esferas civil e administrativa, fica adstrita ao reconhecimento de dolo ou erro grosseiro em suas práticas relacionadas direta ou indiretamente com as medidas de enfrentamento da pandemia e de combate aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes.
Como exemplo de ações de enfrentamento da pandemia, podemos elencar as determinações de lockdown, dispensa de licitação para construções de obras, aquisições de bens ou serviços na área da saúde, requisições administrativas etc. Quanto às ações ligadas ao combate aos efeitos econômicos e sociais, podemos citar as concessões de auxílios financeiros, criação de linhas de crédito subsidiado, redução de alíquotas de impostos, celebrações de termos de parcerias, colaborações e convênios com o setor privado, entre outas.
Apesar de guardar semelhança com o excludente de ilicitude disposto pelo artigo 28 da Lei nº 4.657/42[1] (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB), a MP inova o ordenamento jurídico na medida em que delimita o alcance da isenção de responsabilidade às esferas civil e administrativa. Desta forma, conclui-se estar o agente isento tanto de responsabilidade de cunho sancionatório quanto de cunho reparatório.
A MP não inova sobre a responsabilidade penal dos agentes, nem poderia (artigo 62, §1º, I, “b” da Constituição Federal[2]).
Ainda, o §1º do referido artigo isenta aquele que emite opinião técnica eivada de vícios, salvo se emitida com dolo ou erro grosseiro. Contudo, a autoridade que decide com base na opinião técnica contaminada por erro grosseiro ou dolo não é responsável pelos danos eventualmente causados pela sua decisão, salvo se estivessem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou erro emitido na opinião técnica ou se restar caracterizado o conluio entre o agente emissor da opinião e o agente decisor.
O artigo 1º, §2º da MP dispõe não bastar para a responsabilização do agente a identificação de nexo de causalidade entre sua conduta e o resultado danoso. Somada à necessidade de comprovação de dolo – sendo este o elemento que evidencia a vontade livre e consciente de cometer o ato ou ao menos erro grosseiro, aquele que foge à escusas – tal ação evidencia o afastamento da responsabilidade objetiva do agente no desempenho das funções relacionadas à covid-19.
Para restar caracterizado o cometimento de erro grosseiro do agente, conceituado como aquele que é evidente e inescusável, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia, conforme artigo 2º da MP, devem ser consideradas diversas variáveis previstas pelo seu artigo 3º, que além de reiterar as já previstas pelo artigo 22, caput e §1º da LINDB[3], acrescenta a necessidade de consideração sobre o contexto de incerteza das medidas mais adequadas ao enfrentamento da covid-19 e das circunstâncias de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência.
Em que pese a MP 966/20 não inove de forma relevante no ordenamento jurídico, considerando que todas as suas disposições encontram correspondência no Decreto nº 9.830/19 (regulamenta a LINDB), a medida vem recebendo duras críticas na imprensa, entre parlamentares e operadores do Direito.
A Medida Provisória é altamente criticável por submeter a apuração da responsabilidade do agente público a conceitos pouco objetivos, como “culpa grave”, ”elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”, “contexto de incerteza das medidas mais adequadas para o enfrentamento da pandemia” e “circunstância de incompletude de informações na situação de urgência e emergência”. Tais critérios vagos dificultam a caracterização de “erro grosseiro” e, por conseguinte, podem servir como permissivo a condutas desidiosas por parte dos agentes públicos.
Ademais, as críticas ao texto observam que o atual contexto pandêmico, em conjunto com os sucessivos abrandamentos da legislação atinente às contratações públicas, deu causa a inúmeras denúncias de prejuízos causados à Administração Pública, como superfaturamentos em compras de equipamentos e produtos médicos. Neste sentido, a atual conjuntura demandaria meios mais assertivos para a responsabilização dos agentes públicos, condizentes com a intensiva atuação dos órgãos de controle, a fim de que sejam dirimidas as más condutas e salvaguardados os princípios basilares da Administração Pública, notadamente os da legalidade, moralidade e eficiência.
Outra crítica observada diz respeito ao previsto no parágrafo 2º do artigo 1º da MP. O texto parece conflitar com o disposto no artigo 37, §6º da Constituição Federal[4], posto que mingua o direito de regresso da Administração Pública contra o agente público responsável por danos causados a terceiros. Vale dizer: o Estado somente poderia ser ressarcido pelo agente causador do dano na hipótese de “erro grosseiro”, não bastando a simples “culpa” prevista no texto constitucional.
Ainda que a MP 966/20 tenha sido editada com o objetivo de oferecer segurança jurídica aos gestores públicos e empresas privadas, neste momento excepcional, é certo que seu texto terminou por criar mais insegurança e instabilidade, notadamente porque já existiam instrumentos legais para tratar e respaldar a tomada de decisões públicas em cenário complexo.
A provar a celeuma gerada, a MP já é objeto de várias Ações Diretas de Inconstitucionalidades, a serem apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Permanecemos à disposição para eventuais esclarecimentos adicionais
[1] Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
[2] Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
I – relativa a:
[3] Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
[4] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: