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A Lei das Organizações Sociais – Lei Federal nº 9.637/1998 – em uma postura de dinamismo para a modernização das políticas públicas de saúde e em consonância com a própria Constituição Federal de 1988, além de inserir no ordenamento jurídico nacional o modelo de gestão da saúde pública por meio das Organizações Sociais, também prescreveu a dispensa de processo licitatório para celebração de contrato de gestão (artigos 5º, 6º e 7º).
Em que pese tenha havido questionamentos direcionados à constitucionalidade desta previsão, fato é que foram todos afastados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1923/DF que, contudo, exigiu a observância dos princípios constitucionais para a contratação direta por meio de um processo de seleção público e objetivo.
Mais uma vez, como já abordado em artigo anterior desta série[1] de publicações sobre Saúde e Terceiro Setor, estamos diante de um formato de seleção que, apesar de representar intenção de avanço do legislador, sujeita os operadores do direito, os agentes públicos e os órgãos de controle a uma atuação incerta e sem a desejada ordenação ante a ausência de regramento e definições suficientes que orientem os procedimentos, especialmente relevantes em municípios com menor aparelhamento e infraestrutura.
Assim, observamos dois comportamentos distintos – mas igualmente nocivos – dos Poderes Executivos diante das lacunas normativas. Ou a abertura de procedimentos de seleção muitos similares em estrutura com uma licitação pública nos moldes da Lei federal nº 8.666/93, mesclados com a disciplina da Lei nº 10.520/2002 e com previsões praticamente idênticas àquelas que, apesar de evitar questionamentos dos órgãos de controle, não atingem o objetivo de desburocratização. Ou o descerramento de chamamentos públicos que, de tão simplificados, acabam não sendo capazes de definir adequadamente o objeto, elementos e orçamento necessários à execução dos serviços públicos de saúde, uma vez que as Organizações Sociais disputantes desconhecem a realidade das unidades de saúde objeto de seleção.
E é justamente esta última hipótese o foco deste artigo. Mais especificamente, a indispensabilidade de estudo orçamentário para a eficácia da modelagem e efetivação do direito à saúde, considerando que a complexidade e extensão da totalidade da discussão renderia quantidade a princípio não estimável de artigos.
As problemáticas que envolvem os estudos orçamentários e as pesquisas de preço para estimativa realista e fundamentada do custeio dos serviços de saúde vão muito além do questionamento dos preços/parâmetros de pesquisa pelos órgãos de controle e Tribunais de Contas.
Dado que, tal qual já se refletiu nesta cadeia de artigos[2], as Organizações Sociais de Saúde ficam integralmente dependentes de recursos públicos para promover os serviços de saúde, é indubitável que a qualidade, produtividade e eficiência da prestação de serviços é diretamente impactada pelo, por assim dizer, “desenho” orçamentário imposto pela Administração Pública nos editais de chamamentos públicos.
Ou seja, o sucesso ou fracasso tanto do procedimento de seleção quanto da modelagem depende da exatidão e concretude dos estudos preliminares realizados para orçamentação do custeio dos serviços de saúde a serem prestados.
A ausência de rigor técnico na elaboração da estimativa de custeio não apenas impede a participação de competidores na disputa, como também arrisca o chamamento público ao insucesso, seja pela frustração da competição, seja pela pactuação de contrato de gestão inexequível, que ocasionará grave prejuízo ao direito dos cidadãos ao acesso aos serviços e ações de saúde, salvo se objeto de imediato reequilíbrio econômico-financeiro, resolvendo, em tese, o problema do acesso e criando, em concreto, o problema da contratação tachada de desviada, já que seria provável um universo maior de proponentes no Chamamento Público se a estimativa dos valores necessários para custeio dos serviços fosse real desde o início da disputa.
Tal cenário se mostrou presente em caso no qual uma Organização Social de Saúde assessorada pelo Porto Advogados, a despeito da extensa experiência e dos longos anos de atuação exitosa no modelo, teve sua participação em procedimento de seleção cerceada por inadequações graves e danosas no valor referencial adotado em instrumento convocatório, desde a origem.
Na hipótese foi identificada relevante insuficiência na valoração do custeio da gestão que confirmou-se, posteriormente, ter sido ocasionada pela ausência de elaboração de orçamento estimativo para gestão de unidade de saúde nova, cujo funcionamento fora objetivo da Administração Pública então inaugurar. O equipamento é maior e melhor qualificado para prestação de serviços públicos de saúde na cidade.
Ocorre que o edital do chamamento público estabeleceu valor referencial para gestão pautado singelamente na soma dos gastos da Municipalidade com o funcionamento de outras três unidades de saúde menores e menos modernas, cujos serviços/atendimentos seriam transferidos para o novo hospital.
Mesmo após a formulação de impugnações ao edital/pedidos de esclarecimentos pela OSS assistida juridicamente, inclusive apresentando orçamento estimativo elaborado a partir de sua ampla experiência e know how na área da saúde do Terceiro Setor na tentativa de evidenciação das expressivas falhas verificadas no preço referencial adotado, o Município optou por manter a orçamentação equivocada, ignorando até mesmo a ampliação, otimização e modernização dos serviços de saúde previstas no próprio termo de referência e respectivo plano de trabalho que acompanhavam o instrumento de seleção.
A justificativa apresentada pela Municipalidade na ocasião foi a de que, em que pese tenha contratado duas consultorias especializadas para essa finalidade, os estudos econômico-financeiros produzidos haviam sido desprezados por apresentarem valores discrepantes entre eles, em afirmação ilógica por si só, visto que ao final adotou-se valor ainda mais reduzido que o apresentado por ambas as consultorias, sem qualquer embasamento técnico.
Ainda que a jurisprudência dos Tribunais de Contas e a legislação municipal amparassem o pleito então formulado acerca da necessidade de estimativa adequada dos valores a serem desembolsados e de elaboração de orçamento prévio nos casos de contratação de entidades para prestação de serviços de saúde, tanto a Corte de Contas quanto o Poder Judiciário local permaneceram aguardando adoção de medidas burocráticas pelas secretarias e órgãos técnicos. Estes, por sua vez, obstaram o exame das questões trazidas a lume pela entidade interessada na competição de forma equilibrada, resultando tal estado de coisas na finalização da disputa sem qualquer providência a respeito do obviamente inviável valor referencial traçado para parametrizar a competição entre OSS pela gestão do equipamento de saúde.
Não obstante, como não poderia ser diferente, o chamamento público promovido pela Municipalidade restou fracassado, com a desclassificação das propostas das duas OSS participantes. Uma delas porque apresentou valor expressivamente superior ao limite imposto no edital e a outra porque teria apresentado valores inexequíveis, a despeito do valor global por ela proposto tangenciar muito de perto o valor referencial do instrumento editalício.
Os prejuízos, contudo, estão consolidados. A nova unidade hospitalar não será inaugurada e não será posta em funcionamento no tempo e modo estimados. Pior. A população continuará aguardando por tempo indefinido uma melhor infraestrutura de saúde no Município. Por fim, o trabalho dos agentes públicos envolvidos no procedimento e os valores despendidos para promoção do processo de seleção foram perdidos.
A mudança legislativa inserida no Projeto de Lei nº 10.720/2018 em trâmite na Câmara dos Deputados, ao que parece também está arriscando não solucionar o problema, visto que apesar de incluir previsão expressa de necessidade de realização de pesquisa de preços (art. 17-B do Substitutivo) para lançamento de chamamento público, genericamente estabelece exceções para as hipóteses em que “não for possível a coleta de preços” ou que esta “se apresenta como inconveniente em razão do tempo ou das circunstâncias”.
O aperfeiçoamento, o fortalecimento e a modernização do modelo de Organização Social de Saúde caminha a passos mais lentos do que desejam e buscam realizar aqueles que militam no setor diariamente, mas a evolução e o crescimento das discussões são inquestionáveis. Que o foco que está sendo dado ao tema permita que aprendamos com a experiência e não sigamos cometendo os mesmos erros, seja na elaboração de legislações imprecisas, seja pela ausência de planejamento adequado e suficiente.
Desta forma, a participação permanente e as contribuições dos atores do Terceiros Setor na reconstrução do arcabouço legislativo do modelo são essenciais e indispensáveis.
Maria Catarina Mahtuk Freitas Medeiros Borges
[1] No artigo “Projeto de Lei nº. 10.720/2018: o processo de aperfeiçoamento e fortalecimento do modelo de gestão por organizações sociais no âmbito legislativo”, de autoria da Dra. Gabrielle Rizzato Rossi, disponível no link https://porto.adv.br/projeto-de-lei-no-10-720-2018-o-processo-de-aperfeicoamento-e-fortalecimento-do-modelo-de-gestao-por-organizacoes-sociais-no-ambito-legislativo/
[2] Pela Dra. Valéria Hadlich Camargo Sampaio em artigo “Organização Social: Aperfeiçoamento e Fortalecimento do Modelo como instrumento de implementação das políticas públicas na área da SAÚDE”, que pode ser acessado no link https://porto.adv.br/organizacao-social-aperfeicoamento-e-fortalecimento-do-modelo-como-instrumento-de-implementacao-das-politicas-publicas-na-area-da-saude/