17/08/2022

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Opinião Legal – Piso salarial nacional para os profissionais de enfermagem

Opinião Legal

Consulente
Consulta-nos o Sindicato das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo (SINDHOSFIL/SP) acerca do alcance do conteúdo do § 1º do artigo 2º da Lei nº 14.434 de 4 de agosto de 2022, que altera a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, para instituir o piso salarial nacional para os profissionais da Enfermagem.

A presente consulta é elaborada conjuntamente com o Dr. Pietro Sidoti Superintendente Jurídico de Risco e Compliance do Seconci – SP.

Breve contexto

Inicialmente, é importante contextualizar que o referido diploma tem sido amplamente criticado sob o aspecto de sua constitucionalidade e, especialmente, pelos impactos financeiros nos orçamentos das instituições de saúde públicas e privadas, com destaque para aquelas que prestam serviços ao Sistema Único de Saúde – SUS em parceria com Estados e Municípios.

Em um país continental e de diferenças abissais entre os Estados da Federação, o estabelecimento de um piso único para qualquer categoria, sobretudo aquelas que compõem parte importante da prestação de serviços de saúde tidos constitucionalmente como essenciais, sem que se permita a adequada discussão e programação orçamentária de cada ente federado, é questão que, de fato, suscita debates econômicos, financeiros e sociais.

A Lei nº 14.434/2022, que criou o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira, entrou em vigor no dia 05 de agosto de 2022 e deve ser observado, desde então, para os profissionais que trabalham na iniciativa privada ou no serviço público federal, estadual ou municipal.

Foi estabelecido o piso salarial no valor de R$ 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta reais) para Enfermeiros e valores proporcionais para as demais categorias. Para o Técnico de Enfermagem o salário não pode ser inferior a 70% deste valor, ou seja, R$ 3.325,00 (três mil trezentos e vinte e cinco reais). Já para os Auxiliares de Enfermagem e Parteiras, o salário base não pode ser menor que R$ 2.375,00 (dois mil trezentos e setenta e cinco reais), ou seja, pelo menos 50% do valor pago aos Enfermeiros.

Limites e escopo da presente opinião legal

Não obstante, a presente opinião legal se reserva ao escopo da consulta, qual seja, o que buscou dizer a letra do § 1º do artigo 2º da Lei nº 14.434/2022.

Na linha da consulta, há o entendimento no sentido de que o piso salarial deve ser aplicado indiscriminadamente a todos os profissionais, independentemente da jornada de trabalho praticada. Nesta linha de raciocínio, por exemplo, o piso estabelecido pela lei para o enfermeiro seria o mesmo para um trabalhador com carga horária de 30 (trinta) horas semanais ou de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.

Tal entendimento viria, principalmente, de sindicatos que representam as categorias agraciadas pelos pisos estabelecidos.

Em rápidas pesquisas, foi-nos possível constatar que tais posicionamentos realmente existem e têm sido exarados por tais entidades, senão vejamos:

https://seesp.com.br/tira-duvidas-sobre-o-piso-salarial-da-enfermagem-lei-no-14-434- de-04-de-agosto-de-2022/

Passamos a opinar de forma sucinta.

Num primeiro momento, transcrevemos o texto em questão, com nossos destaques:

“Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
§ 1º O piso salarial previsto na Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, entrará em vigor imediatamente, assegurada a manutenção das remunerações e dos salários vigentes superiores a ele na data de entrada em vigor desta Lei, independentemente da jornada de trabalho para a qual o profissional ou trabalhador foi admitido ou contratado.”

A interpretação gramatical do referido texto deixa claro que o legislador visou, apenas e tão somente, assegurar a manutenção de remunerações já praticadas e que sejam superiores aos pisos estabelecidos pela lei, pouco importando a jornada atual. Visando garantir, portanto, a irredutibilidade salarial, mantendo a segurança jurídica já consagrada pela legislação trabalhista e pela jurisprudência dos tribunais laborais.

Mas não é só.

A interpretação lógica do artigo, e do diploma do qual é parte, estabelece claramente o mesmo fim acima. Fosse diferente, não teria o legislador optado – já no âmbito das discussões do PL 2564/2020 – pela supressão da regulamentação da jornada mínima de trabalho de 30 (trinta) horas que inicialmente era parte do texto do PL 2564/2020:

“Requer a inclusão na Ordem do Dia do PL no 2564/2020, que “estabelece o piso salarial profissional para enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem e parteiras, e regulamenta sua jornada de trabalho. (Movimentação PL de 29.11.21)”

De se notar que já em 02.12.21 a movimentação do dito PL suprime o texto “e regulamenta sua jornada de trabalho”, mantendo-se desta forma até sua conversão na Lei nº 14.434/2022.

O legislador teve, portanto, oportunidade concreta e consciente de regulamentar a jornada de trabalho das categorias agraciadas pela lei e, se não o fez; ou melhor, se optou pela supressão do tema ainda no âmbito do trâmite legislativo, realizou consciente e voluntária opção legislativa, não havendo margem para distorção da letra do § 1º do artigo 2º da Lei nº 14.434/2022.

Mesmo sob a lente da interpretação sistemática, é possível concluir que buscou o legislador preservar a integração e coexistência com as demais normas vigentes no ordenamento jurídico.

Nesse sentido, importante destacar que o artigo 7º da Constituição Federal instituiu a jornada de 44 horas semanais, a exemplo do quanto previsto na Lei nº 8.112/1990:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”

“Art. 19. Os servidores cumprirão jornada de trabalho fixada em razão das atribuições pertinentes aos respectivos cargos, respeitada a duração máxima do trabalho semanal de quarenta horas e observados os limites mínimo e máximo de seis horas e oito horas diárias, respectivamente”

Na medida em que nas Leis n. 7.498/1986 e n. 14.434/2022 não se fixou jornada aos profissionais da Enfermagem, há de se observar a jornada de 8 horas diárias e/ou 44 horas semanais para o pagamento do piso salarial.

Repetimos que a Lei nº 14.434/2022 limitou-se a criar o piso salarial dos profissionais da Enfermagem, sem prejuízo de ter assegurado à manutenção da remuneração daqueles que ganham acima do piso.

Vale dizer: quanto à jornada, devemos prestigiar o previsto pelo artigo 58 da CLT:

“Art. 58 – A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite”

Nos casos em que o profissional cumprir jornada reduzida, inferior à previsão constitucional e celetista, de 8 horas diárias e/ou 44 horas semanais, o piso salarial instituído pela Lei nº 14.434/2022 deve ser aplicado proporcionalmente à jornada trabalhada, respeitando-se, no caso, o salário hora.

Este também é o entendimento do TST, exarado por meio da Orientação Jurisprudencial n. 358, que indica ser lícito o pagamento do piso salarial ou do salário mínimo proporcional ao tempo trabalhado:

358. SALÁRIO-MÍNIMO E PISO SALARIAL PROPORCIONAL À JORNADA REDUZIDA. EMPREGADO. SERVIDOR PÚBLICO

I – Havendo contratação para cumprimento de jornada reduzida, inferior à previsão constitucional de oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais, é lícito o pagamento do piso salarial ou do salário mínimo proporcional ao tempo trabalhado.
II – Na Administração Pública direta, autárquica e fundacional não é válida remuneração de empregado público inferior ao salário-mínimo, ainda que cumpra jornada de trabalho reduzida. Precedentes do Supremo Tribunal Federal – destaque nosso

Assinala-se que a Constituição Federal (artigo 7º, inciso XIII) garante a possibilidade de compensação ou redução da jornada, implicando, evidentemente, remuneração proporcional, resguardado o valor do salário-mínimo, porém não do piso da categoria.

Corroborando com nosso entendimento, trazemos recente julgado da 2ª Turma do TST, de relatoria do Ministro José Roberto Freire Pimenta:

JORNADA REDUZIDA. PISO SALARIAL PROPORCIONAL. OBSERVÂNCIA DO SALÁRIOMÍNIMO. APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL Nº 358, ITEM II, DA SBDI-1.
Na situação em análise, é fato incontroverso que a reclamante cumpria “uma jornada de trabalho semanal de apenas 10 horas diárias”, sendo indevido o pagamento de diferenças salariais em razão do pagamento inferior ao piso da categoria, por força do entendimento firmado nesta Corte superior, por meio do item I da Orientação Jurisprudencial nº 358 da SbDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho, tendo em vista a aplicação à hipótese do entendimento do item II da Orientação Jurisprudencial nº 358 da SbDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho. É de se destacar que tal entendimento, calcado em precedentes do Supremo Tribunal Federal, apenas entende como inválida a remuneração do empregado público inferior ao salário mínimo, nada mencionando quanto ao piso da categoria: “II – Na Administração Pública direta, autárquica e fundacional não é válida remuneração de empregado público inferior ao salário mínimo, ainda que cumpra jornada de trabalho reduzida. Precedentes do Supremo Tribunal Federal” (grifou-se). Destaca-se, ainda, ser incontroverso, na hipótese, que a reclamante, em momento algum, recebeu remuneração inferior ao salário-mínimo, conforme alegações por ela mesma formulada em sua petição inicial. Neste ponto, ressalta-se que, embora o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal garanta a remuneração mínima do trabalhador, com base no salário-mínimo “fixado em lei, nacionalmente unificado”, igualmente garante, em seu inciso V do mesmo disposto, a remuneração do “piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho” (grifou-se). Ainda, o inciso XIII do artigo 7º da Constituição Federal garante a possibilidade de compensação ou redução da jornada, implicando, evidentemente, remuneração proporcional, resguardado o valor do salário-mínimo, porém não do piso da categoria. Verifica-se, portanto, a ocorrência de contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 358, item I, da SbDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de revista conhecido e provido. (RR 12296-78.2015.5.15.0004 – DEJT 26/02/2021)

Ou seja, no setor privado, o profissional da Enfermagem terá direito ao pagamento integral do piso na jornada de 8 horas diária e/ou 44 horas semanais, sendo vedada a redução salarial caso seja praticado salário superior.

Se o empregado realiza jornada inferior a 8 horas diárias e/ou 44 horas semanais, mas recebe salário superior ao piso, também é vedada o aumento da jornada e a redução do salário. Foram as situações supracitadas que o § 1º do artigo 2º da Lei nº 14.434/2022 buscou tutelar.

Sob o prisma da interpretação teleológica, tanto o texto em consulta, como a integralidade da lei à qual ele pertence nos leva a concluir que o fim a que a norma almeja é o de garantir um piso para as categorias sem que seja desrespeitada a isonomia salarial, garantindo a manutenção de remunerações – tão somente estabelecendo um piso nacional mínimo para uma jornada laboral completa/regular. De sorte que haverá, por óbvio, a adequação de valor hora para jornadas parciais, aplicando-se a proporcionalidade de valor/hora justamente com base no novo piso estabelecido, exceto em caso de remuneração superior eventualmente praticada pelo empregador.

Entendido de outra forma, ou seja, distorcendo o parágrafo em tela, ter-se-ia a quebra da isonomia e a aplicação inconsequente do piso às jornadas parciais – elevando obrigatoriamente o “piso” das jornadas laborais completas ou, como define a CLT, normais – levando ao caos financeiro e orçamentário, e ao desvirtuamento do próprio conceito de piso salarial atrelado à uma duração normal de trabalho consagrado no ordenamento jurídico e até mesmo pelas convenções coletivas de trabalho.

Conclusão

Em resposta à consulta realizada, nossa opinião legal é no sentido de que da interpretação do §1º do artigo 2º da Lei nº 14.434/2022 se extrai que o legislador visou apenas e tão somente assegurar a manutenção de remunerações já praticadas e que sejam superiores aos pisos estabelecidos pela lei, pouco importando a jornada atualmente praticada – apenas com o objetivo de evitar interpretações que possibilitassem eventuais reduções salariais para adequação ao piso em prejuízo do empregado.

Por outro lado, não há no parágrafo, ou em qualquer outro texto da lei da qual ele faz parte, expressão que permita ampliação ou distorção do entendimento acima, havendo, inclusive, consistente fundamentação no sentido de que a não regulamentação de jornada de trabalho no âmbito da presente lei foi uma opção consciente e voluntária do legislador durante o processo legislativo de elaboração e discussão do PL 2564/2020, que deu corpo à Lei nº 14.434/2022.

O piso salarial fixado na lei é a contraprestação mínima para uma jornada de oito horas diárias e 44 horas semanais, de forma que, nas jornadas reduzidas o piso legal deverá ser aplicado proporcionalmente.

Outrossim, em que pese o escopo restrito da presente opinião – é fato que as instituições de saúde sofrerão impactos imprevisíveis e, portanto, devem buscar eventuais reequilíbrios econômico-financeiro dos contratos e/ou a revisão de metas e tabelas aplicáveis, de modo a permitir a regular continuidade da prestação dos serviços de saúde.

Essas são as nossas breves considerações.

 

Juliano Barbosa Araújo e Jéssica Xavier Santana, advogados do Porto Advogados, e Pietro Sidoti, superintendente jurídico de Risco e Compliance do Serviço Social da Construção (Seconci).

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