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Quais são os objetivos do Estado por meio do Sistema Único de Saúde?
A resposta vem inscrita diretamente em norma constitucional: prover ações e serviços de saúde de forma universalizada, igualitária e com qualidade, consoante sua natureza de “direito de todos e dever do Estado” (artigos 6º e 196, CF).
A Carta do País também já traçou as diretrizes do modelo de organização, implantação, funcionamento e manutenção desta relevante política pública (artigos 197 e 198, CF).
Foi construído, assim, o Sistema Único de Saúde – SUS, compreendendo prioritariamente uma rede pública envolvendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos atuando em prol da realização de um atendimento de saúde integral, abrangente, portanto, da atenção básica ou primária, assim como dos procedimentos de média e alta complexidade e inúmeras outras ações preconizadas na disciplina constitucional e na infraconstitucional.
Mas o SUS já nasceu desafiando extremas limitações orçamentárias, de infraestrutura, de recursos humanos e uma estagnação absoluta na tomada/execução de decisões/ações, historicamente suportados pelo seu criador – o Estado, além de demanda da população em escala cada vez mais superior à sua capacidade instalada e ao seu tímido esforço de ampliação.
Este cenário de escassez e de engessamento foi “previsto” pelo legislador constitucional, tendo sido admitido já em 1988 o concurso do setor privado em atuação complementar a do Estado, preferencialmente por meio de associações civis sem fins lucrativos e entidades filantrópicas, vocacionadas na execução das ações e serviços públicos de saúde, em parceria com o Estado e atuando no âmbito do SUS, o que tomou forma em 1998 (Lei federal 9.637). Nascia a modelagem das Organizações Sociais de Saúde – OSS, dentre inúmeras outras áreas também contempladas para receber o incremento.
Contudo, 36 anos após a criação do SUS e 26 após a implementação do modelo de atuação complementar, os desideratos constitucionais na área da saúde enfrentam fortes embaraços e remanescem não alcançados. A insuficiência em quantidade e qualidade dos elementos necessários ao atingimento concreto e pleno das finalidades do SUS persiste.
O panorama demanda reflexão. O Sistema clama por reestruturação, sob pena de colapso. Mas e a modelagem complementar? Ao longo de tempo, as OSS assumiram aproximadamente 70% dos serviços públicos de saúde executados no Brasil, revelando-se parceiras valiosas para o Estado e de crucial relevância na manutenção do Sistema. Com elas houve expressivo avanço em direção ao objetivo constitucional.
A finalidade desta manifestação é indicar algumas formas relevantes para o esforço de percorrer o caminho faltante ao atingimento do destino traçado na Constituição Federal e entregar valor aos usuários do SUS, pautando a modernização do modelo de OSS construído na década de 90, como será externado adiante.
As fontes tradicionais de recursos destinados ao setor são os orçamentos da União e dos entes subnacionais, mediante repasses definidos em Contratos de Gestão celebrados pelas OSS. Em acréscimo tem-se subsídios, tais como emendas parlamentares e incentivos decorrentes do atendimento de metas, mas ao fim e ao cabo essas verbas também se originam daqueles orçamentos.
E a isenção tributária não compreende exatamente uma receita, visto que a entidade não despende recursos, mas também não recebe acréscimos.
De outro lado, as OSS não geram receita, pelo que ficam integralmente dependentes de recursos públicos para promover os serviços de saúde. O resultado é que as OSS superam com esmero o engessamento estatal, mostrando-se ágeis e competentes, mas as limitações orçamentárias da Administração Pública as atingem da mesma forma que atingiam a execução direta dos serviços. Talvez não na mesma proporção, mas seguramente com grave impacto.
Nesta perspectiva, a obtenção de receitas por meio da captação de recursos externos, contribuindo para a sustentabilidade das entidades não pode ser enxergada como “infração” ao modelo organizacional estabelecido.
Não subsiste razão para críticas ou vedação a que uma organização social de saúde componha, por exemplo, um consórcio alinhando-se com outras OSS e ou com sociedades empresárias e posteriormente compondo o quadro de acionistas de sociedade de propósito específico, no âmbito de procedimento licitatório com o objetivo de constituir parceria público privada relacionada a sua vocação e, enfim, gerando receitas extras a serem revertidas na execução de seu objeto social.
Na mesma linha, o modelo pode ser impulsionado mediante a admissão da participação das OSS em procedimentos licitatórios objetivando a terceirização da execução de ações e serviços de saúde por meio de contrato administrativo típico.
Ressalve-se que nos dois casos entende-se impositivo refletir uma metodologia de competição que assegure a isonomia entre participantes OSS e participantes sociedades empresárias, na licitação pública.
Também não se ignora que proposições legislativas específicas sobre a matéria terão o condão de rechaçar em definitivo discussões sobre o que a OSS pode e o que não pode realizar no intuito de alavancar recursos para aplicação em suas atividades.
Vale a pena inclusive assinalar que já há em nosso parlamento iniciativas no sentido aqui endereçado. Por exemplo, o Projeto de Lei PLP 103/2022 em trâmite no Congresso Nacional para alteração da Lei da Filantropia (Lei Complementar nº 187/2021, a Lei do CEBAS) contempla proposta legislativa autorizando a captação de recursos pela entidade por meio da realização de atividades clássicas das sociedades empresárias (prestar serviços, comercializar um produto, etc.) e isso sem afetação ou prejuízo do direito à certificação CEBAS.
Nesta hipótese é importante vincular a receita acessória obrigatoriamente para reversão em favor da ampliação e qualificação das ações e serviços de saúde contratualizados entre a Administração Pública e a OSS, com demonstração contábil da providência.
No âmbito do contexto geral no qual se inserem as propostas antes indicadas é necessário repensar a prática comum de se pressionar a adesão dos ajustes celebrados com OSS às ferramentas de contratualização, gestão, controle e conformidade adotadas tradicionalmente pelo Estado para as ações e serviços de saúde prestados de forma direta; a conduta não faz sentido e causa cada vez mais prejuízo ao modelo.
É fundamental estimular o foco nos resultados buscados pela parceria, em prestigiar a verificação da eficácia e da eficiência; administrar melhor a ostensiva preocupação com o processo percorrido pela entidade para obter o desempenho almejado.
Neste ponto, surge mais uma ferramenta significativa para a modernização da modelagem. Trata-se da opção do estabelecimento de uma regulação forte e independente incidindo na execução do Contrato de Gestão.
Em 2023 o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde – IBROSS, formulou uma proposta de Anteprojeto de Lei com o objetivo de colaborar com o Poder Legislativo do Estado de São Paulo na avaliação de projeto legislativo visando a alteração da Lei Complementar n.o 846/98 sobre as Organizações Sociais estaduais. O anteprojeto foi desenvolvido pelo Porto Advogados e uma de suas propostas centrais é a criação de uma agência reguladora do setor.
Em recente trabalho sobre o tema, Pietro Sidoti chamou a atenção para o que denominou de “desbalanceamento da parceria” em virtude de que todo o poder decisório da relação está centrado no Estado “parceiro público que é, ao mesmo tempo, quem qualifica, quem seleciona, quem contrata, quem fiscaliza e quem arbitra conflitos”[1]. Assim, propõe a adoção de uma disciplina de regulação composta por terceiros alheios aos parceiros, que se apresenta como instrumento de interesse para avaliação aprofundada no conjunto de ideias voltadas à modernização do modelo.
Há várias outras propostas e ações para contribuição do aperfeiçoamento e fortalecimento aqui em debate, inclusive levando-se em conta o fato de que tanto a Lei Federal das Organizações Sociais, como a Lei da Filantropia estão na pauta do Congresso Nacional para alteração. Mas este tema pode ser mais bem abordado em outra oportunidade e num texto exclusivo.
O fundamental neste momento é que as lideranças da área de Saúde no Terceiro Setor dediquem especial atenção à dinâmica em curso. O assunto está em ebulição e é certo que o que se determinar a partir de agora interferirá no destino do modelo de Organização Social de Saúde.
Valéria Hadlich Camargo Sampaio
[1] “Por que não criar uma agência reguladora de parcerias da saúde?”, Estúdio Jota; veiculação de 09/05/2024; o autor é Diretor Jurídico do Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde -IBROSS.