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A preservação de contratos públicos após a privatização de uma entidade estatal é um tema que envolve importantes considerações de segurança jurídica, notadamente em razão da modificação do status especial que outorgava, a referidas entidades, prerrogativas, ou determinava condicionantes na relação público-privada.
Se é verdade que, após a vigência da Lei Federal nº 13.303/2016, os contratos formalizados pelas empresas estatais “regulam-se (…) pelo disposto no direito privado” (art. 68), a privatização (seja ela promovida por meio da transferência do controle, ou da alienação a terceiros do ativo público) implica, necessariamente, a transição de um regime jurídico público – ainda que, cada vez mais, enfraquecido –, para um regime de direito privado.
Ademais, dada a múltipla realidade administrativa brasileira, não raro verifica-se a permanência de contratos de escopo licitados anteriormente a 2018, ou mesmo de concessões de uso formalizados sob a regência de legislação esparsa, cuja modificação na natureza jurídica do polo contratual deve ensejar a revisão de parte das cláusulas contratuais incompatíveis com o direito privado.
Neste contexto, cláusulas como a modificação unilateral pelo ente público e a rescisão por interesse público– típicos exemplos de poderes extroversos da Administração Pública – deixam de ser aplicáveis.
A revisão contratual, todavia, não significa que o contrato deva ser anulado automaticamente, ou que tenha suas bases objetivas totalmente modificadas. No processo de transmutação do regime jurídico há que se ter em mente que a preservação de vínculos jurídicos pretéritos é fundamental para assegurar a estabilidade e a previsibilidade nas relações contratuais, ainda mais quando a própria viabilidade econômica do negócio (a despublicatio) deriva da existência de contratos previamente existentes.
De acordo com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), particularmente em seu artigo 6º, a interpretação das normas jurídicas deve levar em consideração as consequências práticas da decisão, promovendo a estabilidade e assegurando a segurança jurídica.
Ao analisar a eventual manutenção dos vínculos detidos pelo SERPRO e pelo DATAPREV (formalizados via dispensa de licitação, com base no art. 24, VIII e XVI) com a União Federal em caso de possível (e não efetivada) privatização, o Tribunal de Contas da União asseverou que:
“a desestatização de uma empresa estatal implica sérias modificações na estrutura e na finalidade da sociedade, que deixa de se vincular aos imperativos da segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo que motivou a sua criação. Todavia, a decisão pela extinção do contrato outrora firmado está sujeita à verificação pela pessoa jurídica contratante da presença da condição especificada na parte final do dispositivo supramencionado, ou seja, da prejudicialidade da execução do contrato” (TC nº 037.061/2019-1, Acórdão nº 2.930/2019-Plenário).
A despeito de inexistir um posicionamento jurisprudencial pacificado sobre o tema, entendemos que, ao transmutar um contrato público em privado, os direitos e obrigações originais permanecem (até mesmo em razão do ato jurídico perfeito), mas, agora, sob os influxos do regime privado, derrogando-se do instrumento contratual cláusulas incompatíveis com os pressupostos civilistas da equivalência das posições contratuais (paridade e simetria).
Frise-se, entretanto, que os elementos essenciais do acordo (o “acordo de vontades sobre a equação econômico-financeira desses atos jurídicos”[1] na lição de Oswaldo Aranha), tais como o objeto e as obrigações contrapostas de parte a parte, ou seja, as bases objetivas do contrato, deverão ser preservados, mediante razoável negociação entre as partes de boa-fé, adaptando-se às novas circunstâncias.
A preservação de tais contratos é justificada pela proteção do equilíbrio contratual, da boa-fé e da continuidade das relações jurídicas, princípios fundamentais tanto no regime público quanto no privado.
A preservação de tais contratos é justificada pela proteção do equilíbrio contratual, da boa-fé e da continuidade das relações jurídicas, princípios fundamentais tanto no regime público quanto no privado.
A rescisão abrupta do contrato, sem essa adaptação, pode gerar instabilidade nas relações jurídicas e prejuízos às partes – notadamente da própria Administração Pública – em contraposição aos objetivos da LINDB e o princípio da função social dos contratos. Portanto, a interpretação adequada de contratos em fase de transição entre regimes deve focar na adaptação e manutenção das obrigações, respeitando o novo enquadramento jurídico, garantindo-se, assim, a continuidade dos serviços e a segurança jurídica das partes envolvidas.
Pedro Paulo de Rezende Porto Filho e Yahn Rainer Gnecco Marinho da Costa
[1] Contrato de Direito Público ou Administrativo. RDA. V. 88. P. 15,33.