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A gestão das “saidinhas” temporárias de presos, embora controversa, reflete uma necessidade fundamental de preparar os detentos para a reintegração social, conforme preconizado pelo art. 1º da Lei de Execução Penal (Lei Federal nº 7.210/1984). Nada obstante a discussão jurídica acerca da aplicabilidade imediata (ou não) da Lei Federal nº 14.843/2024 – que limitou as saídas temporárias apenas àqueles condenados do regime semiaberto para frequência regular em instituição de ensino –, bem como da própria adequação do sistema progressivo adotado no Brasil (MESSA, A. F., Prisão e liberdade. 3ª Ed. São Paulo: Almedina Brasil, 2020. P. 84-85), mais produtivo do que adentrar em maniqueísmos, mostra-se importante concentrar esforços em aprimorar os investimentos e estratégias que garantam uma reintegração social do condenado de maneira segura e eficaz.
O “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema carcerário brasileiro exige uma tomada de posição pelos Entes Estatais. Eles precisam modificar a condição de “business as usual”, no qual a concentração de atividades no Estado demonstrou ser (i) inefetiva, (ii) ineficaz, e (iii) não condizente com o ordenamento jurídico. Essa necessidade de mudança decorre principalmente de dois fatores. O primeiro é o reconhecimento judicial deste cenário inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – pela primeira vez em 2015, e reiterado em 4 de outubro de 2023. O segundo é a correspondente determinação de elaboração compulsória de Planos pela União, Estados e Distrito Federal voltados “para o controle da superlotação carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída de presos” (ADPF 347, Tribunal Pleno, rel. Min. Luís Roberto Barroso).
Dentre as alternativas juridicamente colocadas à disposição do administrador público em uma “long list” para tomada de decisão acerca da política pública (HM TREASURY. The Green Book – Central Government Guidance on Appraisal na Evaluation. Londres, 2022), pode-se citar os modelos de (i) cogestão e (ii) parcerias público-privadas (PPP). O primeiro contempla a contratação de pessoa jurídica especializada para a prestação de serviços e atividades materiais acessórias, instrumentais e complementares à operacionalização e gestão de unidades prisionais, nos moldes da Lei Geral de Licitações (Lei Federal nº 14.133/2021). O segundo, das PPPs, pode abranger outras atividades além das citadas, como as relacionadas à construção e gestão de unidades prisionais. Esta hipótese prevê o controle de resultados e desempenho a ser aferido por indicadores objetivamente mensuráveis, nos termos da Lei Federal nº 11.079/2004.
Tais modelos não podem ser equivocadamente rotulados de “privatistas”, e rechaçados sob o signo de uma falsa inconstitucionalidade. Como salientado pelo próprio Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, “é essencial que os policiais penais/agentes penitenciários tenham efetivamente atenção às questões previstas no art. 83-B, especialmente aquelas de gestão/direção e que envolvam disciplina e segurança (rebelião), além de movimentação externa, deixando-se às empresas privadas parceiras, para aqueles estados que pretendam aderir, a possibilidade de fomento às atividades educacionais, laborais e serviços outros como lavanderia, manutenção de prédios, etc.” (BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Relatório Final do CNPCP para estudo e análise de alternativas para administração penitenciária pelos sistemas de cogestão, privatização e PPP. 2021. P. 36)
Apesar de o modelo de cogestão de estabelecimentos prisionais remontar a 1999 (Guarapuava/PR), tendo se expandido para diversos entes da Federação (tais como Ceará, Bahia, Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Norte), alguns fatores têm levado a uma retração da utilização da cogestão prisional, inclusive por meio da reintegração de estabelecimentos prisionais ao Estado. Entre eles, podemos citar (i) a baixa qualidade dos contratos “engessados” pelo modelo de contratação administrativa tradicional, (ii) as mudanças da política pública em razão do ciclo eleitoral, (iii) os elevados custos de sua implantação, bem como (iv) sua não comprovada efetividade para fins de reintegração social do apenado.
Coroa tal diagnóstico o caos deflagrado em diversos presídios administrados sob esse modelo, nos anos de 2017 (AM, CE, RN), 2019 (CE) e 2023 (RN).
Por sua vez, o modelo de parceria público-privado tem demonstrado, na prática do único contrato já em execução (Minas Gerais) um caminho promissor para a manutenção da ordem pública, ao mesmo tempo em que promove a futura reintegração social do apenado. Tal condição é alcançada por meio de políticas públicas de longo prazo de capacitação, reinserção no mercado de trabalho, e assegura condições mínimas de dignidade ao apenado. Conforme dados da concessionária responsável pelo Complexo Penal de Ribeirão das Neves, em dez anos de operação o equipamento teve baixíssimo índice de fugas, enquanto o modelo de assistência escolar e laboral passou a ter uma alta adesão dos presos.
Ao delegar a construção e operação das instalações a entidades privadas, enquanto mantém o controle da segurança e direitos dos detentos, o Estado pode garantir uma gestão mais eficiente e focada em resultados. As parcerias público-privadas permitem a implementação de melhores práticas de gestão e o desenvolvimento de programas de (i) assistência material (alimentação, vestuário, instalações higiênicas), à saúde física e mental, e religiosa, (ii) trabalho e (iii) educação, que são essenciais para a reabilitação.
Igualmente, há a possibilidade de incremento de novas tecnologias de monitoramento eletrônico e ampliação de programas de apoio que assistam os apenados em cada fase do sistema progressivo penal e assegurem um menor índice de reincidência futura.
Obviamente, referido modelo não é imune a críticas, tanto que, além de Minas Gerais, não foi replicado com sucesso em outros Estados. O próprio Complexo Penal de Ribeirão das Neves ainda é cercado por controvérsias envolvendo a viabilidade de cumprimento dos indicadores de desempenho originalmente contratualizados.
Para incrementar o espaço amostral do modelo de parcerias público-privadas, o Estado do Rio Grande do Sul (RS) assinou, recentemente (abril/2024), Contrato de Concessão Administrativa para construção, manutenção e prestação de serviços não-finalísticos do Novo Complexo Penal de Erechim, fruto de estudo piloto capitaneado pelo BNDES e apoiado pelo BID e pelo PPI. Visando aprimorar o modelo a partir das ocorrências práticas constatadas na contratação mineira, o RS estabeleceu um ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) por 18 meses após o início da operação da unidade prisional, como mecanismo de mitigação de litígios envolvendo indicadores de desempenho e critérios de disponibilidade de vagas, viabilizando uma experimentação do contrato pelas próprias partes contratantes.
Na mesma linha, Minas Gerais está em processo de licitação para a construção, implantação, operação e manutenção de dois Centros Socioeducativos (CSE) e prestação de serviços de atendimento. O mesmo ocorre em Santa Catarina para construção, modernização e operação do Complexo Prisional de Blumenau.
Em fase mais embrionária, vemos a estruturação de projeto para promoção de adequações e prestação de serviços de operação e manutenção no âmbito da Fundação CASA (SP), e para a construção e manutenção de uma a três novas unidades prisionais de regimes fechado, semiaberto e misto, no Espírito Santo.
Em resumo, uma abordagem mais estratégica para a promoção da reintegração social do apenado perpassa, necessariamente, pela melhoria da qualidade e a segurança do sistema progressivo, incluindo-se as eventuais “saidinhas temporárias”. Isso envolve investir em infraestrutura, tecnologia, formação e suporte contínuo, aspectos que podem ser efetivamente gerenciados sob o modelo de parcerias público-privadas, garantindo que o retorno dos apenados à sociedade ocorra de forma mais segura e responsável.
Pedro Paulo de Rezende Porto Filho e Yahn Rainer Gnecco Marinho da Costa