X
Area de atuação Destaques noticias e artigos
Em recente apresentação, o cantor sertanejo Zé Neto dirigiu críticas aos artistas que se utilizariam da Lei Rouanet, em contraponto aos que, segundo ele, não necessitariam de tal “benefício”; fez, ainda, uma crítica indireta à cantora Anitta, com o aparente objetivo de potencializar sua mensagem.
Em consequência, divulgaram-se as recorrentes contratações, a polpudos cachês e sem licitação, de cantores sertanejos pelos mais diversos Municípios, muitos em situação precária.
O assunto incendiou a mídia tradicional e, sobretudo, as redes sociais, culminando com uma live do cantor Gusttavo Lima aos prantos e ameaçando “jogar a toalha”, em razão das cobranças sobre o recebimento de recursos públicos.
No “mundo real”, a polêmica desencadeou uma série de questionamentos dos órgãos de controle (sobretudo do Ministério Público) acerca do emprego de dinheiro público na contratação de artistas.
A par das discussões sobre a qualidade musical dos artistas envolvidos e acerca da gestão da verba pública e do juízo de conveniência e oportunidade na definição das prioridades e políticas adotadas por cada ente público, pretende-se aqui focar nas questões jurídicas que envolvem estas contratações questionadas.
Inicialmente, entende-se não haver óbices para que o poder público estimule a realização de eventos musicais com recursos do erário público. Isso porque, a Constituição Federal de 1988 consolidou o direito à cultura.
Para cumprir o direito assegurado pela Constituição, grosso modo, os entes públicos dispõem: (i) dos mecanismos de fomento, como os previstos na Lei Rouanet – Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e os incentivos a projetos culturais; e, (ii) da inversão direta no segmento cultural, por meio da contratação de artistas, projetos, obras e afins.
A contratação de artistas famosos para promoção de shows e eventos pelas entidades públicas é um dos principais destinos dos recursos aplicados na gestão do setor cultural. O mecanismo, a princípio, atende os mandamentos nucleares das políticas culturais estabelecidos na Constituição (acesso do cidadão às fontes da cultura nacional e o incentivo a sua difusão) e tem o potencial de gerar externalidades positivas (aumento do consumo de bens e serviços na região, com retorno financeiro ao Município, sob a forma de arrecadação tributária e geração de emprego e renda, ainda que temporários).
Não obstante, toda contratação empreendida pelo poder público deve seguir os requisitos estampados na Lei de Licitações. No caso, o modelo de contratação adotado pela Administração Pública é o da inexigibilidade de licitação, possuindo previsão expressa tanto no artigo 25, III, da Lei Federal nº. 8.666/93 (ainda em vigor), quanto pela Nova Lei de Licitações (NLL), que a partir de abril de 2023 será de observância obrigatória (artigo 74, II, da Lei Federal nº. 14.133/2021).
Entende-se por inexigível a licitação quando for inviável a competição.
No caso da contratação de profissionais do setor artístico para realização de shows ou eventos promovidos pela Administração, essa inviabilidade de competição decorre da própria natureza e singularidade do serviço e da impossibilidade de se estabelecer critérios objetivos de comparação entre um ou outro profissional. Por exemplo: não é possível comparar objetivamente Caetano Veloso com Gilberto Gil; ou Claudia Leite com Ivete Sangalo; ou ainda, Leonardo com Zezé de Camargo. Preferência ou gosto não são critérios objetivos, por óbvio.
Em razão disso, o legislador previu que referida contratação seria direta e possível, desde que o profissional seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a validade desse modelo de contratação, estabelecendo ser “inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública” (AgInt no AREsp 556.543/DF, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe 19/6/2018).
A despeito da legalidade de tal modelo de contratação, a discricionariedade do administrador público na seleção e definição do artista não é absoluta, devendo ser justificada e estar relacionada com a natureza do interesse público que se pretende atender, sendo, ainda, compatível com o evento a ser organizado e com seu público-alvo.
Mais do que isso, a NLL (artigos 72, 74 e 94, §2º) passou a exigir uma série de providências a serem observadas tanto pela Administração Pública, quanto pelo próprio contratado, destacando-se: (i) obrigatoriedade de reconhecimento do artista pela crítica especializada ou pela opinião pública; (ii) justificativa do preço e demonstração de sua compatibilidade com a previsão de recursos da Administração; (iii) divulgação no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), com identificação pormenorizada de todos os custos envolvidos, incluindo cachê do artista, músico ou banda, transporte, hospedagem, infraestrutura, logística, dentre outras; e (iv) contratação por empresário exclusivo, vedada a contratação por intermediários ou representantes com poderes restritos a determinado evento ou local.
A necessidade de que o artista possua reconhecimento pela crítica especializada ou pela opinião pública não equivale a dizer que ele tenha conquistado prêmios individuais ou recordes de vendas, mas que seja reconhecido pelo seu trabalho artístico, tornando sua apresentação personalíssima o suficiente para atrair o público, independentemente do estilo musical ou do evento.
Ou seja: deve ser um artista que o público queira ver.
A jurisprudência aceita, inclusive, a possibilidade de o reconhecimento necessário à inexigibilidade ser regional (TCE/SP; TC-019090.989.19-5, julgado em 01/06/2021), ampliando o universo de escolhas da Administração.
Destaca-se ainda, que a alteração substancial verificada na NLL diz respeito à transparência dos gastos e demonstração de que o preço é compatível com o mercado e com a disponibilidade financeira da Administração.
Para tanto, previu a necessidade de o artista contratado comprovar previamente que os preços estão compatíveis com os praticados por ele no mercado, mediante apresentação de Notas Fiscais emitidas no período de até um ano antes da data da contratação, ou outros meios idôneos (artigo 23, §4º).
Em relação à contratação, a nova legislação também exige (artigo 74, §2º) que seja efetivada diretamente ou por intermédio de empresário exclusivo. Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) já vedava a apresentação de atestado de exclusividade restrito apenas aos dias e à localidade do evento, o que caracterizaria a mera existência de empresário intermediador (TCU. Acórdão 5288/2019- 2ª Câmara).
Também merece destaque a hipótese de festivais patrocinados pela iniciativa privada, mas que disponham de evento musical custeado pelo erário público (arranjo comum nos Municípios do interior): nestes casos, a jurisprudência (TCE/SP – TC 000503.013.11) entende ser vedado ao particular a cobrança de ingressos no dia da apresentação do artista custeado pela Administração.
Não observados os requisitos legais, a inexigibilidade de licitação para a contratação de shows artísticos poderá gerar a responsabilização dos envolvidos em diversas instâncias: na penal, pelo crime de contratação direta ilegal; na civil, por ato de improbidade administrativa e ressarcimento de eventuais danos ao erário; e na administrativa, perante os tribunais de contas e por órgãos corregedores.
Em conclusão, se é certa a possibilidade legal de contratação, sem licitação, de artistas de renome local ou (inter)nacional, pelos entes públicos, é igualmente correta a necessidade de que os gestores públicos e os próprios artistas densifiquem, adequadamente, a justificativa e os objetivos da contratação, sobretudo por meio da inclusão de evidências robustas dos benefícios almejados: fomento da cultura, geração de emprego e renda, incremento da arrecadação tributária; enfim, a demonstração de que se trata de um investimento, e não da alegada “farra” com dinheiro público.
Nesses termos, como cantam os Titãs: “A gente não quer só comida. A gente quer comida. Diversão e arte”
Vamos aos shows!
Juliano Barbosa de Araújo, Fernando Gelli Aiello e Guilherme do Lago Zenni