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Já comentamos em ocasião anterior que o Código Civil Brasileiro contempla dispositivo que impõe o regime da separação obrigatória de bens nos casos de casamento em que um dos nubentes tenha mais de 70 anos (art. 1.641, II). Ou seja, os maiores de 70 anos que pretendam se casar ou manter união estável não podem escolher o regime de bens. A lei determina que será o da separação obrigatória, modelo no qual os patrimônios de cada cônjuge não se comunicam. A intenção do legislador foi proteger a pessoa idosa e seus herdeiros necessários de casamentos realizados por interesses unicamente econômico-patrimoniais.
Essa regra já foi relativizada pelos Tribunais ao permitir a comunhão do patrimônio amealhado na constância do casamento, desde que devidamente comprovado o esforço comum dos cônjuges na aquisição dos bens, possibilitando a partilha desses específicos bens quando da dissolução da sociedade conjugal.
No caso de falecimento, porém, não há transmissão de quaisquer bens, isto é, o cônjuge não é meeiro e nem herdeiro do de cujus. Isso não impede, porém, que um cônjuge, por meio de testamento, destine até 50% do seu patrimônio em favor do outro, a fim de lhe beneficiar na hipótese de falecimento. Na prática, vem-se buscando soluções para enfrentar a restrição legal que, sem dúvida alguma, afeta a autonomia da vontade dos nubentes. Já há posicionamento firmado também no sentido de inaplicabilidade do regime de separação obrigatória quando comprovada a união estável entre os nubentes antes de se atingir a idade de 70 anos.
A questão em torno da imposição do regime de bens ao maior de 70 anos suscita calorosas discussões e vem sendo discutida entre juristas há algum tempo, até mesmo porque o Código Civil de 2022 já nasceu velho, como costuma-se afirmar. O seu texto tramitou no Congresso por mais de 20 anos até ser aprovado e sancionado, tendo sido ultrapassado pela realidade social.
Agora, o assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do recurso extraordinário com agravo nº 1309642 (ARE 1309642), com repercussão geral reconhecida pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso. No caso concreto, foi declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do inciso II, do art. 1.641 do Código Civil, em processo de inventário no qual se discutiu o regime de bens a ser aplicado à união estável que se iniciou quando o falecido possuía mais de 70 anos. O juiz de primeiro grau sustentou que o dispositivo do Código Civil fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, já que o maior de 70 anos também é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens. Essa decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que defendeu a constitucionalidade do dispositivo legal, sob fundamento na necessária proteção à propriedade e à herança das pessoas idosas, aspecto também assegurado pelas normas constitucionais.
A Procuradoria-Geral da República defende a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil, isto é, a constitucionalidade do regime da separação obrigatória de bens para maiores de 70 anos. Deveremos, assim, aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal e a tese que venha a ser fixada para o tema.
Entretanto, e sem a pretensão de defender a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da regra legal, é inegável que a presunção absoluta da incapacidade do maior de 70 anos para decidir o regime aplicável às uniões familiares que resolver contrair traduz preconceito etário e desconsidera radicalmente a autonomia da vontade dos indivíduos. Há que ser levado em conta também o aumento na expectativa de vida da população e a realidade social atual, com participação ativa de pessoas com mais de 70 anos na sociedade. A legislação precisa estar em conformidade com as novas dinâmicas das relações afetivas, sem dúvida alguma.
Tania Siqueira